— Boa tarde, senhorita!
— Boa tarde, senhor!
— Muito prazer! Polico Miranda.
— O prazer é todo meu, seu Polico.
— Vossa graça é…?
— Pode me chamar de “a leitora da praça”.
— Mas que poético! Que livro lês?
— É um livro de provérbios.
— Gostas dos provérbios?
— Sim, bastante. Eles ensinam muita coisa boa.
— É verdade. Mas eu confesso que eu preciso conhecer eles melhor.
— Ui!
— O que houve?
— Já passou. Toca a crônica!
— Este encontro deve ter sido marcado pela divina providência; pois ontem mesmo eu disse a si mesmo…
— Ui!
— …que gostaria muito de conhecer melhor os provérbios – apalpar eles, acariciar eles, abraçar eles, beijar eles e-ti-cé-qui-te-ra.
— Ui, ui, ui, ui, ui!
— O que foi? Sentes dor?
— Sim, nos ouvidos. Eu preciso ir, para não piorar.
— Mas é tão cedo!
— Não é não. Se eu tivesse ido embora antes, meus ouvidos não estariam doendo.
— Entendo. Ou não. Então eu poderia fazer um humilde pedido?
— Que espécie de pedido?
— Pelo menos sussurrai-me um provérbio; um provérbio que marque este momento inoxidável.
— Inolvidável, não?
— Ou isso.
— Um provérbio? Está bem.
— Ah, eu sabia que a senhorita me concederia essa graça inicial! (Estou se saindo bem.)
— Pode ser um provérbio francês?
— A escolha não poderia ser melhor! Faz biquinho, faz!
Fille qui parlemente est à demi rendue.
— Lindo, belíssimo! Repete, por favor, repete!
Fille qui parlemente est à demi rendue.
— Mas que biquinho charmoso! Imagino como não soaria bem esse provérbio na língua de Luiz Vaz de Camarões, que é, por acaso, a nossa também!
— Camões!
— Eu disse o quê?
— Camarões.
— Tem certeza? A memória me traiu. Mas apenas confundi o nome, não a pessoa. Afinal, ele é inconfundível! “Tudo vale a pena se alma não é pequena.”
— Essa frase não é de Camões.
— Não?
— Não.
— Nunca foi?
— É um verso de outro notável português.
— Cristiano Ronaldo?
— Quase acertou. Fernando Pessoa.
— Fernando Pessoa… Fernando Pessoa… Olha, dessa família eu só me lembro do João Pessoa, lá da Paraíba.
— (Tem gosto o burro de ouvir seu zurro.)
— Mas o tal provérbio francês em nossa língua é… três, dois, um, fogo!
Moça que negocia está meio rendida.
— Não entendi. Mas não me cheira bem.
— E homem casado que negocia já é meio traidor.
— Homem casado? Não sei porque a senhorita está dizendo essas coisas. A senhorita sabe se eu sou casado ou não?
— Sei, sim. A minha mãe é muito amiga de dona Cicinha.
— Cicinha? Que Cicinha?
— A sua mulher.
— Céus! É mesmo! Ai, eu não estou se sentindo bem. Estou ficando tonto.
— Mais do que é?
— Não brinques com a desgraça aleatória.
— Alheia!
— Ou isso. Mas, voltando ao meu mal-estar… começou agora, do nada. Acho que é um mal hábito.
— Mal súbito, infeliz! Parece que eu estou pagando pelos pecados que acabei de evitar.
— Estou com maus pressentimentos… Eu não estou preparado para encontrar a maldita…
— Fingimento não mata.
— Não estou falando da morte, mas da outra maldita…
— Gente! A dona Cicinha precisa saber disso! Irei à sua casa amanhã, com a minha mãe.
— Não, não! É melhor deixar a denúncia mais para o futuro, já que não poder ser mais para o passado.
— Pode ser mais para o passado, sim.
— Como?
— Iremos hoje mesmo à sua casa. Hoje é o passado de amanhã, certo?
— Vamos negociar; não mais uma paixão, frustrada, coitada; mas um perdão.
— Está perdoado.
— Estou?
— Sim.
— Assim, de graça?
— Sim.
— Nem deu trabalho. Vale um louvor: Minha reverência, imaculada e desperdiçada figura, misericórdia encarnada, beleza das belezas, princesa de Asnúrias…
— Astúrias! (Jumento!)
— Ou isso. O que importa é que estou perdoado… estou perdoado mesmo?
— Sim.
— Então a visita carnicenta à minha casa não é mais necessária.
— É necessária, sim! Dona Cicinha saberá de tudo; mas saberá, inclusive, do meu perdão ao seu assédio.
— Olha, vou lhe dar um conselho. É melhor enterrar logo o defunto, aqui e agora. Ela nem ficará sabendo…
— Nada disso! Só vamos fechar o caixão depois que a dona Cicinha vir o morto.
— É grave a situação.
— Posso lhe dar uma sugestão?
— Ouvi-la-lo-ei com a atenção de um súdito!
— Abandone o uso do pronome pessoal da segunda pessoa do singular. Ajustar os verbos a “tu”, “te” e “ti” é trabalhoso e cansativo. O senhor precisa ganhar tempo.
— Obrigado por esse alívio. A carga do “tu” é pesada. Então lhe pergunto eu, e somente eu pergunto, porque você não “pergunto”, mas “pergunta”: Se eu beijar os seus pés, você muda de ideia? Posso até incluir os seus joelhos na penitente beijação. Aproveite, porque a promoção é só hoje!
— Negativo.
— Vamos direto ao assunto, inclusive usando “tu”, para expressar minha desesperada reverência: Aceitarias algum dinheiro, como se dádiva fosse a um santo perdoador?
— Quase dormi. Acho que não ouvi tudo. Em todo caso, a resposta é não.
— Então diga você mesma alguma coisa para mim fazer, que valha a sua misericórdia.
— Para “eu” fazer!
— Confesso que eu não sou muito bom em matéria de pronônimos, hormônimos, proposições, regência verbal, regência musical e por aí vai.
— Todos os uis do mundo!
— Não sei mais para qual lado conduzo a minha imploração. Estou indefeso como um menino, diante dessa encurvada pessoa.
— Encurvada?
— Sim.
— Eu sou encurvada?
— Sim, como a estrada de Santos…
— Curvilínea!
— Ou isso. O que importa são as belas curvas… da estrada de Santos, como diz a canção de Roberto Carlos, inspirada nas curvas que faziam os seu poderosos chutes.
— Não insista nos gracejos inconvenientes!
— Perdoe-me o deslizamento.
— Deslize!
— É que eu estava com a cabeça nas curvas da estrada de Santos… e ali ocorrem deslizamentos…
— Sei.
— Inclusive, diz um provérbio manganês: “As curvas da moça são o tobogã da mão do homem.”
— Misericórdia! Os homens da “Manganésia” são abusados, incluindo o senhor.
— É chegado o fim?
— Não sei. Depende do autor.
— Prossigo, então. Como disse Platão… sei lá o que disse Platão!
— Algo mais?
— Nada mais. Está consumido.
— Consumado!
— A desgraça é a mesma. Resta-me dirigir uma súplica à virgem – esta que tenho o lado, no caso.
— Pode mudar a linguagem, seu Polico!
— Perdão! Eu não quis entrar na sua intimação.
— Intimidade, seu pateta!
— Minha última prece: Ó, estrela de oitava grandeza, que envergonha o próprio sol e cuja beleza se irradia intergalacticamente! Como estou me saindo?
— Cada vez pior. Quer saber de uma coisa? Adieu!
— Adiou?
— Ui!
— A esperança foi a última que morreu. É chegada a hora, ó, Amélia…
— Ei, como o senhor sabe o meu nome?
— Você não me disse?
— Não. Pode reler a crônica.
— Então o nosso autor se equivocou. Mas agora eu sei o seu nome! Já era!
— Que maldição!
— Ó Amélia, franga inútil que negou ao cansado a carne macia da juventude e ainda o lançará faminto na cova da onça! Encerra-se aqui a nossa programação. Obrigado pela audiência e tenham todos uma boa noite! Menos Amélia.
Adieu!
— Adiê, sua vaquê egoistê, filhotê do capetê!
— Ui, ui, ui, ui, ui!

Descomplicando a Fé Cristã
Compartilhe esta página