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“Um céu em silêncio é o maior mistério de nossa existência.” Com essa declaração, Robert Anderson, escritor cristão irlandês, começa o seu livro, O Silêncio de Deus, publicado em 1897.[1] E Jacob A. Dell escreveu: “É verdade que o maior problema de todos em nosso pensamento é o problema do mal, incluindo o mal na natureza, como bactérias e terremotos.”[2] O “silêncio de Deus” diante do sofrimento humano é a maior objeção das pessoas à fé cristã. Muitas delas dizem que não podem crer em um Deus que permite tanto sofrimento; que não impede que tragédias destruam vidas inocentes. A conclusão comum é que, se ele existe, ele não pode ou não quer, por incompreensíveis razões, nos livrar de nossas dores.

J. A. T. Robinson observa que a variedade de ateísmo representada por escritores como Nietzsche, Dostoievski, Camus e Sartre deriva sua força da seriedade com que ele leva o problema do mal.[3] Robinson diz: “Um Deus que ‘causa’ ou ‘permite’ o sofrimento de uma única criança é moralmente intolerável. Assim, o debate varia, para trás e para a frente, em alguns dos grandes diálogos da literatura moderna – em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski; em A Praga, de Camus; e, mais recentemente, em O Sangue do Cordeiro, de Peter de Vries (descrevendo a agonia de um pai assistindo a sua menina morrer de leucemia). Mas, naturalmente, isto não é nenhum debate de intelectuais. É a raiz do ateísmo na maioria das pessoas comuns e, hoje, é afirmado abertamente até mesmo pelos jovens.”[4]. A Praga (La Peste, em francês), romance de 1947 de Camus que lida com o absurdo do sofrimento inocente, “falou por uma inteira geração emergente,” como Robinson escreveu”[5].

No romance autobiográfico O Sangue do Cordeiro, Peter de Vries – ou, antes, Don Wanderhope, no texto – assevera: “O homem é inconsolável, graças àquele eterno ‘Por quê?’, quando não há nenhum Porque; aquele ponto de interrogação engastalhado como um anzol no coração humano.”[6]

O poeta e dramaturgo escocês Robert W. Buchanan (1841–1901) escreveu em um soneto:

FILHOS realmente nós somos – filhos que esperam
[…]
A casa é agradável, mas tudo está desolado
Porque o nosso Pai não vem.[7]

Uma expressão clássica do problema do mal foi dada por Boethius (c. 480-524 AD), um filósofo cristão: “Se Deus é justo, por que o mal?”[8] Ele escreveu em A Consolação da Filosofia:

Mas esta coisa é a principal causa de minha dor, a saber, que, quando existe um bom governador do mundo, o mal deva absolutamente existir, ou, existindo, deva ficar impune. Eu gostaria que você pensasse quão estranho é esse fato por si só. Mas há um ainda mais estranho ligado a isso: a má conduta reina e floresce, enquanto a virtude não apenas carece de sua recompensa, mas é até mesmo pisoteada por malfeitores e paga as penas, em vez do crime. Quem pode se admirar e reclamar o suficiente que tais coisas devam acontecer sob o domínio de Um que, enquanto onisciente e onipotente, deseja somente o bem?[9]

No primeiro capítulo de seu livro, Anderson discorre sobre a perplexidade universal com a ideia de um Deus que é dito ser todo-poderoso e misericordioso, mas dá a impressão de não ser nem um, nem outro, ou mesmo existente. O autor fala da miséria no mundo e que Deus parece ser mais desinteressado na condição humana que nas estrelas:

Qual mente é competente para compreender a soma de toda esta miséria do mundo, amontoada dia após dia, ano após ano, século após século? Os corações humanos podem planejar, e as mãos humanas realizam, algo pouco para aliviá-lo, e o braço forte e pronto da lei humana pode realizar muito na proteção dos fracos e na punição dos ímpios. Mas, quanto a Deus – a luz da lua e das estrelas não é mais fria e impiedosa do que ele parece ser![10]

Anderson narra casos de massacres cruéis de cristãos e questiona a inércia divina:

Mas não tem o Deus Todo-Poderoso nenhum poder para controlar tais crimes? […] Mas em vão nós esticamos os nossos ouvidos para ouvir alguma voz do trono da Divina Majestade. O longínquo céu onde, em perfeita paz e indizível glória, Deus habita e reina, está EM SILÊNCIO!

“Então voltei e considerei todas as opressões que se cometem debaixo do sol; e veja, as lágrimas dos oprimidos e eles não tinham consolador; e do lado de seus opressores havia poder; mas eles não tinham consolador. ” [Ecles. 4: 1] E isso em um mundo regido e governado por um Deus que é Todo-Poderoso!

E quando tiramos nossos pensamentos do grande mundo ao nosso redor e os fixamos no estreito círculo de Seu povo fiel, os fatos não são menos severos e o mistério se torna mais inescrutável. Homens devotados deixam nossas praias, abandonando a segurança, o conforto, os encantos, os incontáveis ​​benefícios da vida no meio de nossa civilização cristã, para levar o conhecimento do verdadeiro Deus às terras pagãs. Mas logo ouvimos falar de seu massacre pelas mãos daqueles a quem procuravam elevar e abençoar. E onde está “o verdadeiro Deus” que eles serviram? O pequeno grupo de homens cristãos que eram, em um sentido especial, Seus embaixadores credenciados, mulheres nobres também, que compartilharam seu exílio e seus labores, e crianças cujo terno desamparo poderia despertar a piedade de um verdadeiro demônio, em seu terror e agonia choraram ao céu pelo socorro que nunca veio. O Deus em quem eles confiavam certamente poderia ter transformado os corações ou restringido as mãos de seus assassinos brutais. É possível imaginar circunstâncias que reivindicariam mais apropriadamente a ajuda daquele a quem eles adoravam como todo-poderoso tanto no céu quanto na terra? Mas a terra tem bebido em seu sangue e um céu silente tem parecido zombar de seu clamor![11]

Na sequência, Anderson alude àqueles que morreram por sua fé nas mãos das autoridades romanas na Inquisição:

E esses horrores são meras ondulações na superfície do mar profundo e amplo de sofrimentos da Igreja ao longo das eras de sua história. Desde os velhos tempos da Roma pagã até os séculos das chamadas perseguições “cristãs”, os incontáveis milhões dos mártires, os melhores e mais puros e nobres de nossa raça, têm sido entregues à violência e ultraje e morte de formas horríveis. […] Dilacerado por feras na arena, dilacerado por homens tão impiedosos quanto feras e, muito mais odioso, nas câmaras de tortura da Inquisição, Seu povo morreu, com os rostos voltados para o céu e os corações erguidos em oração a Deus; mas o céu parecia duro como bronze, e o Deus de suas orações tão impotente quanto eles próprios ou tão insensível quanto seus perseguidores![12]

Então o autor irlandês reflete sobre a agonia de uma mulher, uma crente fiel, à beira da morte, na presença de seus impotentes e atônitos filhos (crescidos):

Se alguma vez houve um santo na terra, é a mãe a cujo leito de morte os filhos e filhas foram convocados de várias atividades de negócios ou de lazer. Em todas as suas andanças, a piedade e a fé daquela mãe têm sido uma influência orientadora e restritiva. E agora, assim reunidos mais uma vez no antigo lar, eles estão ansiosos para ver como, na crise solene de seus últimos dias na terra, Deus tratará com um dos mais amáveis e verdadeiros de Seus filhos. E o que eles veem?  O pobre corpo atormentado pela dor que nunca cessa até que toda a capacidade para o sofrimento seja extinguida pela mão da Morte! Se a habilidade humana pudesse trazer alívio, o médico assistente seria considerado sem coração ou incompetente. Deus é, então, incompetente ou sem coração? Para Ele, eles olhavam, para aliviar as agonias de morte da santa moribunda, mas eles olham para Ele em vão![13]

Anderson afirma que as suas palavras serão bem-vindas por muitos, “como dando plena e clara expressão a pensamentos familiares.”[14] Mas tais ideias não refletem o seu próprio pensamento. O que Anderson está fazendo é isto: “Expressão tem sido dada a dificuldades e dúvidas às quais nenhuma pessoa pensativa é estranha.”[15] Ele não está revoltado com Deus, mas somente observando o mundo como um incrédulo faz. Ele não está alimentando a dúvida, revolta e incredulidade. O seu propósito em declarar o dilema humano de um modo que atemoriza crentes, mas não incrédulos, é preparar o caminho para a mensagem sobre a misericórdia divina, entendida dentro do plano de Deus para a redenção, com dispensações históricas bem definidas, até a consumação final, na volta de Cristo: “E a declaração dessas dificuldades aqui é feita com vista à sua solução.”[16]

Perto do fim da obra, Anderson põe novamente o problema como se segue:

A infidelidade negocia com o silêncio do Céu, a inação do Supremo. Se existe um Deus todo-poderoso e todo bom, por que Ele não usa o Seu poder e dá prova de Sua bondade da maneira que os homens escolhem esperar dele? A resposta geralmente oferecida pelo apologeta cristão falha, ou em silenciar o oponente ou em satisfazer o crente. E com razão, pois ela carece não apenas de poder de convencimento, mas também simpatia. O Deus da Bíblia é infinito tanto em poder quanto em compaixão; e em outras épocas Seu povo teve prova pública disso. Por que, então, Ele está tão silente?[17]

E ele fala outra vez do objetivo de sua obra: “Somos nós deixados a procurar a resposta tateando no escuro? Não lança a revelação nenhuma luz sobre ela? Para sugerir a solução deste mistério, estas páginas foram escritas.”[18] Portanto, Anderson não escreveu uma obra para criticar Deus pelo seu “silêncio”, como pode parecer inicialmente. Ele está apenas expressando momentaneamente o sentimento e o pensamento comum das pessoas, para que ele possa, então, oferecer as respostas das Escrituras.

O problema do sofrimento incomoda a muitos cristãos também, que amam a Deus e o servem, e creem que ele tem todo o poder e os ama verdadeiramente; mas, por isso mesmo, não entendem bem por que ele os deixa também sofrer toda sorte de males. Assim, desconhecendo ainda as razões de Deus, tais cristãos sofrem da mesma perplexidade e angústia existencial dos que não creem nele, permanecendo, inclusive, incapazes de comunicar-lhes razoavelmente o evangelho – as boas novas do amor de Deus.

Muitos cristãos buscam consolo, em seus momentos de tristeza, na crença de que tudo que acontece é da vontade de Deus. O raciocínio consolador é que, se Deus quis que algo acontecesse – e nada acontece fora de sua vontade, como se crê comumente –, é porque “é o melhor”. Entretanto, é, ainda assim, difícil entender isso. Como a morte sofrida de uma criança pode ser a melhor alternativa de Deus?

A ideia de que tudo que ocorre no mundo é da vontade de Deus deriva primariamente de uma palavra de Jesus: “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai” (Mateus 10:29). Porém, esse dito é, por vezes, traduzido insatisfatoriamente, como veremos, ignorando-se, inclusive, a mensagem do contexto. Não, nem tudo que ocorre é da vontade de Deus. Ele está seguindo o seu justo plano para a redenção final da criação e, deliberadamente, ainda não retomou completamente o controle sobre ela. É ainda o diabo que (des)governa o mundo, excluindo-se a realidade espiritual dos crentes em Cristo, sobre a qual ele não tem poder. Somente na nova criação a vontade de Deus responderá por tudo.

É também relativamente comum a ideia de que Deus envia males, para causar grandes bênçãos através deles. Desse modo, quando ocorre uma tragédia, a pergunta a ser feita deve ser “Para quê, Senhor?” e não “Por que, Senhor?”. Mas é verdade que Deus faz isso? De fato, ele pode fazer brotar bênçãos das desgraças, bem como ele disciplina a quem ama (Heb. 12:6), embora não o faça com prazer: “Porque não aflige nem entristece de bom grado os filhos dos homens” (Lam. 3:33). Mas isso é diferente de crer que ele envia desgraças, mais do que elas já pertencem naturalmente a um mundo amaldiçoado pelo pecado, para causar grandes bênçãos.

Não são poucos os cristãos que creem que Deus causa o mal e até mesmo o criou originalmente, apoiados em Isaías 45:7: “Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu sou o Senhor, que faço todas estas coisas.” Tanto essa ideia, quanto a de que tudo que acontece é da vontade de Deus precisam ser relativizadas e postas na perspectiva correta.

Jó sofreu muito. Porém, mesmo sendo um homem temente a Deus, tentou justificar mais a si mesmo do que a Deus. Eliú se levantou e fez uma defesa magistral de Deus. Ele disse: “Espera-me um pouco, e mostrar-te-ei que ainda há razões a favor de Deus. De longe trarei o meu conhecimento, e ao meu criador atribuirei a justiça” (Jó 36:2-3). Veio a se chamar Teodiceia o esforço – teológico, no nosso caso; porque poderia ser também filosófico – para justificar a Deus, ou mostrar que ele é justo, em seu comportamento em relação ao mal no mundo. O termo foi cunhado por G. W. von Leibniz, a partir das palavras gregas theos, Deus, e dike, justiça.

Esta obra pretende mostrar que Deus não é a origem de nosso drama, o qual, entretanto, ele se dispôs misericordiamente a solucionar. Veremos que ele não criou, nem distribui o mal e que nem tudo que acontece é de sua vontade, ao contrário da crença comum.

Esta curso pretende ajudar incrédulos e crentes, agnósticos e ateus, medrosos e perplexos, a entender quem Deus verdadeiramente é, fez, não fez, está fazendo, não está fazendo, fará e não fará. Um pouco de boa vontade e um ouvido atencioso e sem preconceito é tudo de que se necessita para acompanhar proveitosamente o raciocínio bíblico-teológico proposto e chegar ao ponto culminante da mensagem geral da Bíblia: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16); ele “prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rom. 5:8). Robert Anderson diz, ao se aproximar da conclusão de seu livro: “Os homens apontam para os tristes incidentes da vida humana na terra e perguntam ‘Onde está o amor de Deus?’”[19] Então Deus aponta para a cruz como a sua manifestação sem reserva de amor, como Anderson afirma.[20]

Então, talvez como nunca, o evangelho fará sentido como “boas notícias”: Deus falou conosco, trazendo a sua proposta para a nossa redenção pela fé em Cristo, cuja volta inaugurará o novo mundo sem o mal, sem tristeza, sem dor e sem morte.

Para ensejar a nossa exposição lógica e elucidativa da mensagem geral da Bíblia, começaremos com a aversão humana à morte, que só pode significar uma coisa: não fomos criados – por Deus! – para morrer, mas para viver em eterna felicidade.

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[1] The Silence of God. New York: Dodd Mead & Co., 1897. p. 1. All notes in Anderson’s original text are inserted between brackets into the respective places of the quotations.

[2] Jacob A. Dell, I Still Believe in God (Columbus, Ohio: The Wartburg Press, 1942), 122.

[3] The New Reformation? London: SCM Press, 1965. pp. 112–113. Tradução nossa.

[4] Ibid., p. 113. Tradução nossa.

[5] Ibid., p. 112.

[6] The Blood of the Lamb. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2005. p. 243. Tradução nossa.

[7] The Poetical Works of Robert Buchanan. London: Chatto & Windus, 1884. p. 248. Tradução nossa.

[8] Si Deus justus – unde malum?

[9] The Consolation of Philosophy: an English Translation. Trad. de W.V. Cooper. Dent: London, 1902. p. 102.

[10] Anderson, Silence of God, p. 2.

[11] Ibid., pp. 5–7.

[12] Ibid., p. 7.

[13] Ibid., p. 8.

[14] Ibid., p. 62.

[15] Ibid., p. 84.

[16] Ibid., p. 62.

[17] Ibid., p. 161.

[18] Ibid., p. 162.

[19] Op. cit., p. 150.

[20] Ibid.

Descomplicando a Fé Cristã
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