O Senhor ensinou: “Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar [em grego, ἀπολύω, “divorciar”, “repudiar”] sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério [faz com que ela cometa adultério]” (Mateus 19:9). É como se a formulação do verso fosse esta: “[…] qualquer que repudiar sua mulher, por causa de adultério dela, e casar com outra, não comete adultério.”

Se um homem se divorciar de sua mulher, ou o contrário, por ela ter cometido adultério, um novo casamento dela é adultério, mas o novo casamento dele, não. O adultério pelo segundo casamento é da parte adúltera.

O problema do novo casamento de um cristão divorciado é sério, do mesmo modo que a simples imaginação de adultério de quem não se divorciou: “Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela” (Mateus 5:28).

O que diz o apóstolo Paulo sobre o rompimento do casamento? “Todavia, aos casados, mando, não eu, mas o Senhor, que a mulher se não aparte do marido. Se, porém, se apartar, que fique sem casar ou que se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher” (1 Cor. 7:10–11). Naturalmente, há de se levar em conta aqui as palavras de Jesus, segundo Mateus, das quais Paulo não trata: está livre para casar o cônjuge cujo divórcio foi causado pelo adultério da outra parte.

Jeremias 3 apresenta o desgosto de Deus com a idolatria de Israel – um adultério religioso que levou a um divórcio. Porém, como veremos, a suprema vontade de Deus, onde há traição, é o perdão e a reconciliação (que pode não ser aceita pela parte iníqua). Foi impressionante o que Deus disse:

“Ora, tu te maculaste com muitos amantes; mas, ainda assim, torna para mim, diz o Senhor.” (v. 1)

“[…] mas tu tens a testa de uma prostituta e não queres ter vergonha.” (v. 3)

“Eis que tens dito e feito coisas más e nelas permaneces.” (v. 5)

 Apesar de tudo, Deus ainda diz, “mas, ainda assim, torna para mim”. Isso é amor em seu mais elevado grau.

“Disse mais o Senhor nos dias do rei Josias: Viste o que fez a rebelde Israel? Ela foi-se a todo monte alto e debaixo de toda árvore verde e ali andou prostituindo-se. E eu disse, depois que fez tudo isto: Volta para mim; mas não voltou.” (vv. 6–7)

Então Deus disse:

“[…] por causa de tudo isso, por ter cometido adultério, a rebelde Israel despedi e lhe dei o seu libelo de divórcio […]” (v. 8)

“Deveras, como a mulher se aparta aleivosamente do seu companheiro, assim aleivosamente te houveste comigo, ó casa de Israel, diz o Senhor.” (v. 20)

Aconteceu aqui o que Jesus disse em Mateus 19:9, a saber, divórcio praticado em virtude de adultério (impenitente).

Felizmente, Israel se arrependeu e foi acolhido pelo Senhor: “Voltai, ó filhos rebeldes, eu curarei as vossas rebeliões. Eis-nos aqui, vimos a ti; porque tu és o Senhor, nosso Deus” (v. 22)

Quando dois não querem separação, separação não há. Quando dois querem reconciliação, reconciliação há. Deus é o nosso exemplo de misericórdia e perdão. Mas quando um não quer, dois não se reconciliam.

Caberia aqui a pergunta que os discípulos fizeram em outro contexto (de Jesus afirmando que dificilmente entrará um rico no reino dos céus): “Quem pode, então, ser salvo?” (Mateus 19:25). E a resposta de Jesus lá também se aplicaria aqui: “Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível” (v. 26).

Nós não conseguimos cumprir perfeitamente as expectativas de Deus. Acertamos aqui e falhamos ali. E assim vamos. Então, como podemos receber as bênçãos divinas? A resposta de Jesus seria: é impossível se depender de nosso mérito. Todavia, o que é impossível aos homens é possível a Deus: abençoar-nos, apesar de nossas fraquezas, contanto que sejamos humildes e contritos. Isso é a graça.

“Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hebreus 4:15). Esse verso diz muito mais dos que percebemos comumente. Jesus não pecou, de modo que ele Deus o ouve plenamente. E ele intercede por nós, que não conseguimos não pecar completamente. É nele que podemos contar com a misericórdia de Deus para os nossos pecados.

O apóstolo João escreveu: “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (I João 2:1). O apóstolo tinha que nos exortar a não pecar. Assim como Jesus requereu que sejamos perfeitos como Deus é perfeito. Isso dito, João acrescenta o grande consolo da misericórdia divina para nós, fracos como somos: “[…] mas, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo.” Graças a Deus, podemos contar com o Senhor para defender-nos de nossa culpa e, pela santidade dele, nos livrar da condenação e assegurar a bênção divina. E não há razão para supor-se que isso não se aplica aos irmãos que casaram novamente após o divórcio, para ficar somente nesse caso.

O apóstolo Paulo escreveu em 1 Coríntios 6:911, que devassos, idólatras, ladrões, avarentos, maldizentes, adúlteros etc. não “herdarão o Reino de Deus”. Porém ele acrescenta que “mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito do nosso Deus”. Essa santificação significa naturalmente que os pecados listados foram abandonados. No caso de adultério, como entender a santificação e a justificação, se há continuidade da relação originada em adultério? Pode ser que Paulo se refira aos devassos que se entregam ao adultério costumaz e vicioso. É muito forte sustentar que cristãos que se casaram após divórcio por razões outras que o adultério não herdarão o reino de Deus.

John Piper escreveu: “Embora não seja o estado ideal, permanecer em um segundo casamento é a vontade de Deus para um casal e suas relações contínuas não devem ser vistas como adúlteras.”1 É difícil entender isso. Mas não deve ser difícil entender isto: “Um crente divorciado e/ou recasado não deve se sentir menos amado por Deus, mesmo se o divórcio e/ou novo casamento não for coberto pela possível cláusula de exceção de Mateus 19:9.”2

Porque “o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo” (Tiago 5:11). “As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim” (Lam. 3:22). “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida” (Salmos 23:6).

Disse o profeta Malaquias:

“Ainda fazeis isto: cobris o altar do Senhor de lágrimas, de choros e de gemidos; de sorte que ele não olha mais para a oferta, nem a aceitará com prazer da vossa mão. E dizeis: Por quê? Porque o Senhor foi testemunha entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher do teu concerto. […] e ninguém seja desleal para com a mulher da sua mocidade. Porque o Senhor, Deus de Israel, diz que aborrece o repúdio e aquele que encobre a violência com a sua veste, diz o Senhor dos Exércitos; portanto, guardai-vos em vosso espírito e não sejais desleais.” (2:13–16)3

O texto fala das lágrimas e gemidos de mulheres que foram repudiadas por seus maridos. O divórcio retratado no texto é o repúdio gratuito, não causado por infidelidade, que deixa a mulher em prantos. J. C. Baldwin comentou, “o divórcio é igual a cobrir de violência as suas vestes, uma expressão que configura todo tipo de injustiça grosseira que deixa marcas que todos podem ver […]”4 A versão inglesa da Nova Versão Internacional traz o verso assim: “‘O homem que odeia e se divorcia de sua mulher’, diz o Senhor, o Deus de Israel, ‘faz violência a quem deveria proteger, diz o Senhor Todo-Poderoso. Portanto, fique atento e não seja infiel’.”

O texto não fala de divórcio por adultério da mulher, pelo que se deduz que o mesmo se refere ao ato de repudiar a mulher por qualquer motivo. Esse divórcio, tratado como violência, é a infidelidade ao pacto de lealdade nas núpcias. O divórcio “por qualquer motivo” é infidelidade e violência.

Vamos avançar mais, perguntando: o divórcio que permite, diante de Deus, um novo casamento à parte traída em um adultério, contempla exclusivamente o pecado do adultério em si ou pode o adultério representar um campo semântico de maldade que preveja a violência física, psicológica e moral, o abandono em condições críticas, a infidelidade aos votos conjugais de consideração, companheirismo etc.? A infidelidade pode ser externa, envolvendo uma terceira pessoa, ou também vale, para Jesus, a infidelidade interna, em que o cônjuge é desprezado, humilhado e maltratado?

Nesse caso, parece-nos menos condenável o novo casamento de um cônjuge cujo divórcio não foi causado necessariamente por adultério, mas por maus tratos ou indiferença, do que o casamento que se mantém, mas é marcado por abandono, maus tratos, falta de consideração etc. Casamento sem amor não é casamento.

 

  1. Divorce & Remarriage: A Position Paper. Disponível em https://www.desiringgod.org/articles/divorce-and-remarriage-a-position-paper. Acesso em: 2 nov. 2022. Tradução nossa. Grifo nosso.
  2. O que diz a Bíblia a respeito do divórcio e um novo casamento? Disponível em https://www.gotquestions.org/Portugues/divorcio-segundo-casamento.html. Acesso em: 2 nov. 2022.
  3. Grifos nossos.
  4. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e comentário. Trad. de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1972. p. 202. Tradução nossa.